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sábado, 18 de julho de 2015

Caros antepassados,

Caros antepassados, 


Nem adianta fazerem os cálculos, pois o tempo não se conta mais daquele jeito. “Ano” é uma palavra que saiu de moda. Assim como acreditar; definitivamente isso é algo ultrapassado. 

— Fala-se em vida extraterrestre há séculos. Se há vida inteligente no além via láctea, por que eles não entraram em contato?
— Por que trovões você ainda está falando nisso? Supera!

O correto é descrer. Quem garante que existe uma zona abissal no oceano? Já esteve lá? E que a Terra é o planeta azul. Já esteve no espaço? Tá bom, homens foram viver em Marte em 2025, aham... Assim como experiência quase morte é real. Por favor! Só me falta falar que você acredita em alma. 

Acho que em termos de expectativas, avançamos muito pouco de um determinado período pra cá no que concerne a tecnologia. Robôs não deram tão certo assim e logo desistimos deles – sentimentos programados são mais complicados do que homens de seu tempo poderiam imaginar. Não, o presente não é cheio de pessoas com roupas prateadas. O mais ignorante de meus contemporâneos já entendeu que carros voadores são tão inúteis quanto o combustível diesel da época de vocês. Soltaram essas asneirices no passado, quando imaginaram o tal do futuro. Falando nisso, “futuro” foi um conceito derrubado há uma dúzia de décadas. A comunidade científica concorda: só existe passado e presente, presente ou passado. Lide com isso. Aliás, dizem que lidar com as coisas é muito mais fácil agora, pois acabaram com aquele péssimo hábito de encarar interlocutores, sabe? Olho no olho é um absurdo!

— Poucos são os gestos mais grosseiros do que esse. - é o que diz Jonanthai – Abençoados sejam os criadores dos smartphones.

Se ainda vivêssemos no antigamente, eu chamaria Jonanthai de “pai”, mas não, isso não existe mais. Esse lance de família tradicional caiu por terra há tempos. Não sei exatamente quantos, pois nunca entendi muito bem o que o tempo é e nem fui atrás de descobrir, até porque é desse jeito que funciona a escola hoje em dia: escolhemos o que queremos aprender. A propósito, volta e meia me esqueço de perguntar a um dos mentores se o tal do “pai”, quando foi inventado, é terminado em “i” por causa da Lei constitucional que vigora até então, onde obriga todo mundo a ter o nome próprio finalizado por “i” de igualdade. Fico feliz que tenham optado por esse princípio. Já pensou se tivessem escolhido pelo princípio da fraternidade ou da liberdade (sim, me orgulho de ter me interessado por Revolução Francesa)? Meu nome seria Ameliaf ou Amelial. Ameliai tá bom, pensando bem. 

— Aonde você pensa que vai?! - Brunoi perguntou enquanto postava na rede a fotografia de um arquivo sigiloso que encontrara em seu trabalho ainda mais cedo. 
— Vou curtir um pouco na casa da Juliai. - respondi cabisbaixa, mexendo em meu teletexting portátil.

Brunoi não fez mais perguntas, porque ele só estava curioso quanto ao lugar que eu ia, não com quem. A geração de Brunoi, assim como a de Jonanthai e Viviani – que como eu disse, numa época em que famílias tradicionais existiam, eles seriam meus “pais” - é assim: interessa-se pouco por quem tá por perto e muito por quem tá longe, seja fisicamente, seja temporalmente. Por outro lado, são as pessoas que estão por perto que têm de aguentar a quantidade de coisas que eles gostam de compartilhar. Louco assim. Mas não me incomoda muito, pelo menos eles estão por fora das coisas que rolam comigo e com minhas companhias. Fico imaginando se existisse isso de família coruja, que fuça tudo na vida de quem são responsáveis, eu teria mais problemas do que pode parecer. 

***

Ao sair de casa, parei de fingir que mexia no teletexting portátil e estralei o pescoço, porque fico bem travada quando passo tanto tempo em casa e não olho pra outro lugar que não pra essa maldita telinha. Teletexting portátil, caso não tenha ficado claro, é a versão em miniatura do teletexting. Pelo que já pesquisei, os teletextings tiveram como antecessores os “telefones”, só que trocaram o “fone” pelos “texting”, porque ninguém mais utiliza o aparelho fonador pra se comunicar através desses “tele”, então não fazia mais sentido ter o “fone” ali no meio, empacando a palavra. 

O bom de estar com os meus amigos é que eles também não são muito adeptos desse estilo de vida. É justamente por gostarem de ser chamados de “amigos” que logo é denunciado o caráter peculiar deles e ai de mim se soubessem com quem ando. 

O vocabulário deles – que não deixa de ser o meu – é bastante condenado, dizem que é vulgar, antiquado, inapropriado. Tudo porque meus amigos gostam de resgatar aquilo que eles acreditam que não deveriam se perder no meio do caminho. Priorizar eventos presenciais a eventos virtuais, conversar durante horas a fio pessoalmente, dentre outras práticas, é considerado rebeldia. O fato de eles acharem que não têm nada de errado falar em fidelidade, privacidade ou que encarar a pessoa com quem está falando não é ofensa os coloca níveis abaixo da linha da normalidade. Não é por falta de tentativa de nos fazermos entender que nós seguimos incompreendidos, na verdade é até engraçado quando tentamos conversar com nossas famílias não-tradicionais, explicar, por exemplo, que conversar olhando pra pessoa é uma forma de dar atenção e até de dar carinho, mas não querem saber de papo.

— Essa juventude tem cada ideia… Só quer subverter a ordem e os bons costumes!
— Daqui a pouco vão vir com papo de relacionamento a dois e impor a heteronormatividade. - comentam em sarcasmo.

São uns exagerados! E tudo isso só porque eles não querem nos ouvir. Pois que não ouçam! E que também não nos encham o saco – o bom é que eles não enchem mesmo, porque como eu já falei, eles não se interessam muito. Mal sabem eles que a supremacia dos mais velhos é uma tradição mais antiga que carros movidos a eletricidade! 

O negócio é que vivemos em tempos de pouco contato. O que é bem esquisito, porque nunca fizemos tanto sexo na História. O amor, dizem, é livre. Mas nunca vi tanta regra. Não podemos amar só uma pessoa. Ter parceiro fixo é coisa de romântico possessivo, coisa de neandertal. Fico me perguntando se essa apropriação da palavra “neandertal” é correta, mas hoje em dia, “neandertal” significa “ultrapassadézimo”. 

— Conservadores! – Adrianoi fala revoltado – Ninguém manda em mim! Fico preso a quem eu quiser.
— Eu mais ainda. – Marinai concordou – Se eu não conseguir me apaixonar por mais ninguém além da Juliai, o que eu posso fazer? Vou ser julgada por causa disso?
— Pelo menos você ainda curte uma pessoa com o mesmo órgão reprodutor que o seu. Sou considerado ainda mais aberração, só porque prefiro quem eu possa preencher. - Marcosi disse chateado. 

Entendo a revolta deles, embora eu seja um pouco conservadora nesse ponto. Não que eles me chamem de careta na minha cara, mas devo concordar que tenho lá as minhas ressalvas. Acredito que ninguém seja de ninguém. Acredito que relacionamentos fixos são problemáticos – meus responsáveis estão aí pra comprovar, três ciumentos de plantão. Sempre funcionou dessa forma, não é mesmo? Pra que mexer nisso? 

Pensar assim só demonstra que eu não discordo de tudo nessa vida. Claro que amar várias pessoas ao mesmo tempo é legal. Ouvi dizer que, há muito tempo, era errado que pessoas com vagina se relacionassem com outras com vagina ou que pessoas com pênis se relacionassem com outras com pênis; faziam distinção se você nascia com um ou com outro, assim como pessoas que tinham tons de pele e traços físicos diferentes eram postos em hierarquias… Não, isso é bizarro! É claro que isso tinha de ser superado e foi, muito bem, diga-se de passagem. Só que por mais que essas loucuras tenham sido jogadas no lixo, não tenho certeza se por todas essas conquistas, agora, automaticamente, a ideia de igualdade está sendo bem trabalhada.

Minha dúvida é se por “igualdade” vocês queriam dizer “exterminar as variáveis”. Pois pergunto: fizemos certo quando eliminamos as crenças e estabelecemos como regra a descrença? Tudo bem censurar quem desvia à regra? O que temos pra nós, hoje, é que a globalização, da época de vocês, foi um tremendo sucesso e hoje respeitamos todas as culturas… Bom, claro né? Só tem uma cultura hoje em dia: essa.

Eu sei, eu sei. São perguntas demais. Mas se o presente, que tal como já disse, nem mesmo avançou tanto assim, não tá dando conta do recado; se o futuro não existe, só me resta enviar essa carta pela minha máquina do tempo e torcer pra que um dos gênios daí tire as minhas dúvidas. 

Por mais que agora existam restrições para tal gesto, sei que em algum lugar do passado não tem o menor problema em finalizar meu recado para um estranho com

Abraços, 

Ameliai

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